terça-feira, 1 de setembro de 2009

P.E MANUEL DE SÁ, S.J.

PROFESSOR, BIBLISTA, ESCRITOR

Notícia biobliográfica

Manuel de Sá nasceu em 1530 (é portanto alguns anos mais novo que Camões) e morreu em 1596, em Arona, nos arredores de Milão, Itália (Camões tinha morrido dezasseis anos antes). Entrou para os Jesuítas com dezassete anos. A Companhia de Jesus estava então no seu explosivo início; tinha sido fundada em 1540, mas já reuniria em 1545 centenas de membros.
Matriz vila-condense onde sem dúvida foi baptizado o P.e Manuel de Sá

Depois de estudar em Coimbra, foi Manuel de Sá para a Espanha, para a província de Valência, mais em concreto, para Gandia. Com dezanove anos (1547), começa a ensinar Filosofia na Universidade local, que fora fundação do Duque de Gandia – duque que virá a ser S. Francisco de Borja; a ele me referirei com algum vagar para o fim da minha exposição. Manuel de Sá foi professor particular deste Santo e acompanhou-o a Roma em 1550-51.
Regressado a Espanha, passou este vila-condense para Alcalá de Henares, para uma universidade que havia de ser conceituadíssima e ficava nas proximidades de Madrid (é conhecida também como Universidade Complutense).
“Chamado por Santo Inácio de Loiola a Roma, aí começou a sua brilhante carreira de professor de Teologia e de Sagrada Escritura no Colégio Romano, onde foi também prefeito dos estudos” (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).
“Foi um dos correctores designados por S. Pio V a fim de preparar uma revisão oficial da Vulgata e no pontificado de Gregório III fez parte da comissão da qual saiu a edição dos Setenta por Sisto V” (ibidem).
Está-se no período da Contra-Reforma e do Concílio de Trento. Havia necessidade acrescida de ser científico. Chama-se Vulgata à tradução da Bíblia para latim feita por S. Jerónimo (séc. IV). Os Setenta são uma tradução do Antigo Testamento para grego realizada ainda antes da nossa era.
A atestar o seu saber bíblico, deixou o P.e Manuel de Sá duas obras, os Scholia in Quatuor Evangelia (encontram-se também aqui) e as Notationes in totam Scripturam Sacram. Que elas são notabilíssimas deduz-se das muitas edições que tiveram na Europa Central ao longo do século XVII e do valor que ainda hoje lhes é reconhecido. Só para dar alguma ideia do mérito do trabalho bíblico do P.e Manuel de Sá, leiam-se estes períodos colhidos na Enciclopédia Verbo:
“Ambos estes trabalhos merecem dos críticos os maiores encómios (em especial, no segundo, insere as lições variantes do Targum e dos LXX, e confronta amiúde a Vulgata com o texto massorético)”.
Os targuns são uma espécie de paráfrases a textos bíblicos e podem vir ainda de antes da nossa era. Põem à nossa consideração antigas interpretações e ajudam certamente também a determinar eventuais variações ocorridas no texto.
Não se consegue dizer o que é “o texto massorético” sem fazer um pouco de história. Veja-se: no séc. VIII da nossa era, os rabis judeus verificaram que os textos sagrados que usavam não eram rigorosamente iguais, isto é, ao longo dos séculos, os copistas tinham introduzido variações. Então reuniram-se para procurar a versão mais fidedigna, mais fiel ao original. Depois de realizarem o seu trabalho, fizeram cópias novas e destruíram as antigas. À assembleia de rabis que então se reuniu é que se chama Massoretas; diz-se massorético o texto que dela resultou.
Rosto duma edição dos Aphorismi Confessariorum (Aforismos dos Confessores), de Madrid, 1601.

Também se afirma do trabalho de biblista de Manuel de Sá uma outra coisa notável, que é o ter ele devolvido ao texto bíblico o seu sentido literal. Ele próprio aliás o declara a abrir as Notationes. Era então hábito entranhado procurar descobrir, sobretudo nas narrativas bíblicas, uma outra narrativa paralela à literal, alegórica. Assim, na Parábola do Samaritano, a casa onde este é tratado era vista como representando a Igreja, o homem que do Samaritano se compadece representava Jesus Cristo, o Samaritano eram os discípulos de Cristo, etc., etc. Regressar ao sentido bíblico literal era uma novidade cuja importância nos é hoje muito difícil de avaliar, mas era certamente enormíssima.
Além das obras de exegeta bíblico, publicou também Manuel de Sá os Aphorismi Confessariorum (encontram-se também aqui), que é considerada a sua melhor obra e teve grande impacto histórico. Foi várias vezes editada na versão latina – uma em Tóquio em 1603 – e teve também quatro edições em tradução francesa.
Deve-se ainda a este jesuíta a fundação do Colégio de Milão.

Três textos
No início das Notationes, explica o autor a utilidade do seu livro:

“1. Explicam, de um modo muito breve, toda a Escritura, segundo o sentido literal; e, que eu saiba, tal nunca tinha sido feito antes. Alguém dedica enormes volumes a cada um dos livros da Escritura; nós, como se vê, seguimos caminho muito diferente.
2. Trazem várias citações do hebraico, do aramaico e dos Setenta, o que também é novo e muito valoriza a nossa edição.
3. Podem ser impressas num livro independente, mesmo num pequeno volume, como as escrevemos. Quem é que, não tendo consigo a Bíblia Sagrada, de modo a poder consultá-la rapidamente, ou antes, quando a lê, pode apresentar tais Anotações?
4. Elas podem ser impressas com a Bíblia, ao modo das que fez Vatablus, e que mereceram grande aceitação, embora não expliquem o nosso texto mas não sei que edição hebraica.
5. Acrescentámos no fim do livro explicações de todas as expressões usadas na Vulgata, que trazem grande luz ao entendimento de toda a Escritura.
6. Acrescentámos também um copioso índice, mas ao mesmo tempo breve, como é nosso hábito, onde cada um pode encontrar facilmente quase tudo o que quer.
7. Preparámos ainda um segundo índice, por ordem alfabética, de frases selectas da Escritura, que pode substituir a concordância; contém quase tudo o que pode ser usado nos sermões, nas citações e nas meditações”.

Nas mesmas Notationes coloca o autor esta oração, que é uma dedicatória a Cristo:

“Sabeis, Senhor, que os autores dos livros costumam dedicá-los aos príncipes.
Mas eu não conheço nenhum príncipe nem maior nem melhor que Vós.
A Vós, pois, Senhor Jesus, dedico este livro. A Vós, a quem, desde jovem, por vossa graça, me entreguei na Ordem do vosso nome, já há quase 50 anos, sob a chefia do vosso Vigário e Pontífice Romano.
Recebei, Vos suplico, Senhor, este pequeno presente do Vosso servo e fazei que ele seja útil à Vossa Igreja, para quem foi preparado.
Se nele há alguma coisa indigna de Vós, perdoai ao meu pouco saber. Mas se há coisas dignas (como espero que haja muitas), louvem-Vos aqueles que sabem que nada de bom se pode fazer sem Vós.
Ámen”.
Rosto duma edição das Notationes de 1601, existente na Biblioteca Pública de Braga. À esquerda, Moisés abraça as tábuas da Lei; do lado direito, é certamente Aarão quem segura um turíbulo.

Os Aphorismi dedica-os Manuel de Sá a Nossa Senhora. Eis os termos em que o faz:

“Publiquei há pouco, em nome do vosso Filho, ó Virgem Santíssima, as Anotações a toda a Sagrada Escritura; não encontrei ninguém a quem com mais vantagem pudesse dedicar o livro. Mas, depois do Filho de Deus, a quem dedicaria esta obra senão à Mãe de Deus?
Aceitai, pois, ó Sacrário da Sabedoria divina, este livrinho ordenado com frases de sábios ilustres e guardai-o com a Vossa protecção; promovei-o, para que ajude à salvação eterna de muitos.
Ámen”.

Breves observações sobre as obras de Manuel de Sá

As obras de Manuel de Sá, que se assinalam em bibliotecas europeias, americanas e até da Ásia, podem ser consultadas também em bibliotecas portuguesas. Na Biblioteca Pública de Braga existem as três: dois exemplares das Notationes in totam Scripturam Sacram, de 1601 e 1651; dois exemplares dos Scholia in quatuor Evangelia, de 1602 e 1610; e seis exemplares dos Aphorismi Confessariorum, de 1601, 1613, 1615, 1618, 1622 e 1638.
Na Biblioteca Pública Municipal do Porto, existe um exemplar das Notationes in totam Scripturam Sacram, de 1598, e dois dos Aphorismi Confessariorum.
Existem também as três obras de Manuel de Sá na Biblioteca de Évora.
Nestes três livros, o autor adopta planos de exposição muito simples e eficazes.
O primeiro deles alonga-se por um pouco mais que 550 páginas. Além das anotações livro a livro da Bíblia, no fim, são acrescentados dois índices, um de «frases da Escritura em ordem alfabética» e outro de «algumas sentenças selectas da Escritura em ordem alfabética». No primeiro caso trata-se apenas de expressões, no segundo propriamente de frases.
Os Aphorismi, que vão um pouco além das 400 páginas, apresentam-se num formato pequeno, de bolso, podia-se dizer, e as variadas matérias estão dispostas como nas enciclopédias, por entradas ordenadas alfabeticamente. A palavra “aforismo” tem no livro pouco a ver com o sentido que hoje lhe damos.
A edição dos Scholia in quatuor Evangelia que consultámos tem 568 páginas.
Rosto duma edição dos Scholia, de 1602, existente na Biblioteca Pública de Braga. A moldura que envolve a área escrita é a mesma da edição das Notationes, embora com alguns acrescentos. Nos cantos estão representados os quatro evangelistas.

Nota - O P.e Manuel de Sá talvez não tenha sido o primeiro jesuíta vilacondense. De facto houve um culto "irmão" também de Vila do Conde, de nome João Lopes, e que faleceu antes de 1564. Cfr. Brotéria, vol. 172, Março 2011, pág. 287.

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